DO PCC AO PALÁCIO

Como um Precedente Arriscado Pode Redefinir o Poder dos Réus Contra a Justiça

Imagine que, em um dia qualquer, todas as varas criminais de dois estados do Sul do Brasil fossem paralisadas porque réus acusados de pedofilia decidiram que não aceitariam os juízes escalados para seus casos. ‘São rigorosos demais’, alegaram, enquanto seus advogados sugeriam que uma saída possível seria ameaçá-los de morte: ‘Ou saem do caso, ou não viverão para julgá-lo.

No Sudeste, porém, esse cenário não é hipotético. Desde 2018, 110 juízes já receberam ameaças de morte vindas do PCC, que não tolera homens e mulheres de toga que cumprem o dever de enfrentar o tráfico e o crime organizado, punir assassinos e preservar vidas. O que parece uma distopia é, na verdade, o retrato de um Judiciário sitiado, onde cumprir a lei significa enfrentar os piores desmandos e desafiar os limites da coragem.

Saímos do cenário distópico e mergulhamos em um verdadeiro filme de terror. Malandramente, criminosos como Fernandinho Beira-Mar e Marcola aperfeiçoaram um ‘modus operandi’ perverso: reinterpretar o artigo 252 do Código de Processo Penal para justificar situações criadas após o início dos processos, subvertendo sua real aplicação. Mas o que antes era exclusividade do crime organizado ganhou um aliado inesperado. Com a mesma estratégia, alguém que ocupou o maior cargo da democracia brasileira agora tenta dar força a essa interpretação inválida. Pior: busca normalizá-la, incutindo no imaginário coletivo — especialmente dos que desconhecem o Direito — uma noção completamente absurda e perigosa.

Jair Messias Bolsonaro, assim como qualquer outro grande apenado deste país, sabe que um magistrado só pode ser afastado de um processo se a causa de sua suspeição for independente e anterior ao início dos procedimentos judiciais. O que é verdadeiramente espantoso, porém, é que ao invocar a suspeição de Alexandre de Moraes com base na alegação de que o Ministro foi alvo de um plano sórdido de assassinato, o ex-presidente parece, inadvertidamente, admitir que ele mesmo tenha participado ou orquestrado tais ameaças. Afinal, para que Bolsonaro, enquanto réu, pudesse usufruir da suspeição de Moraes, seria necessário que ele próprio tivesse dado causa ao impedimento. Essa contradição, longe de ser trivial, revela a fragilidade de sua estratégia e o perigo de transformar a Justiça em palco de narrativas irreais.

Para além dos bandidos comuns, cabe destacar que, mesmo entre os 110 juízes ameaçados de morte pelo crime organizado, nenhum foi afastado dos processos que envolviam seus ‘Fred Kruegers’ da vida real. Isso porque, em todos os casos, a jurisprudência manteve-se firme na interpretação do artigo 252 do Código de Processo Penal, restringindo-o a situações prévias e independentes do processo em curso. Essa coerência jurídica preserva a imparcialidade do Judiciário sem ceder a pressões externas.

No caso do Ministro Alexandre de Moraes, a questão da suspeição é ainda mais nobre e transcende o mero texto legal. Por mais que as ameaças golpistas tenham incluído a possibilidade de sua morte física, a verdadeira vítima dessas conspirações não é o homem Alexandre de Moraes, mas o sistema político brasileiro. É a democracia brasileira que se torna alvo central de um plano tão sombrio. Essa compreensão, de uma elegância raramente alcançada, reafirma a importância do papel institucional atribuído a qualquer magistrado da Suprema Corte: a defesa intransigente das estruturas que sustentam a República do meu país.

Minha tristeza é incomensurável ao perceber que, mais uma vez, as pessoas foram levadas a defender um ponto de vista que, caso acolhido, resultará na insanidade de termos bandidos escolhendo juízes ‘bonzinhos’ para julgá-los. É ainda mais doloroso saber que aqueles que escolheram honrar a toga já carregam sobre si o peso de um risco reconhecido — um risco que o Plenário do Senado teve de formalizar ao classificar a atividade do Judiciário como de alto risco. Afinal, ser ameaçado faz parte da natureza perigosa dessa profissão.

Juízes que assumem tal cargo sabem que talvez nunca voltem para casa, assim como soldados que marcham para proteger a pátria. O senso de dever os move, e é esse mesmo dever que os impede de ceder às ameaças, seja de um traficante ou de um ex-presidente. O que me inquieta é ver a normalização de argumentos que, longe de proteger a Justiça, a submetem ao capricho dos que desejam silenciá-la. E, ao final, é a própria democracia que será sacrificada, caso a sociedade continue aplaudindo estratégias que só perpetuam o poder dos verdadeiros algozes da liberdade.

Referências

BRASIL. STF. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. DIREITO PROCESSUAL PENAL. ARGUIÇÃO DE IMPEDIMENTO. AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS AUTORIZADORES.. ARGUIÇÃO DE IMPEDIMENTO 165 DISTRITO FEDERAL n. 165. JAIR MESSIAS BOLSONARO. PGR. Relator: LUÍS ROBERTO BARROSO. Julgamento em 20 de fevereiro de 2024. Diário Oficial da União. ARGUIÇÃO DE IMPEDIMENTO 165 DISTRITO FEDERAL. Brasília, 20 de fevereiro de 2024.

BRASIL. STF. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PROCESSUAL PENAL. ARGUIÇÃO DE IMPEDIMENTO. AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS AUTORIZADORES.. ARGUIÇÃO DE IMPEDIDMENTO . Relator: LUIS ROBERTO BARROSO. Julgamento em 20 de fevereiro de 2024. Diário Oficial da União. DECISÃO : AIMPE 163/DF. Brasília, 20 de fevereiro de 2024.

Calegari, Luiza; Santos, Rafa. Juízes comemoram inclusão do Judiciário entre atividades de risco. Consultor Jurídico. São Paulo, 2024.  Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mai-12/juizes-comemoram-inclusao-do-judiciario-entre-atividades-de-risco/. Acesso em: 14 dez. 2024.

Conselho Nacional de Justiça. Brasil tem 110 magistrados sob proteção. CNJ. Brasília, 2018.  Disponível em: https://www.cnj.jus.br/category/noticias/cnj/. Acesso em: 14 dez. 2024.

Editorial. Bolsonaro agora é suspeito formal por trama golpista. Folha de São Paulo. São Paulo, 2024.  Disponível em: . Acesso em: 14 dez. 2024.

Renata Silva Alves, formada em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia, possui vasta experiência e dedicação à área jurídica. É especialista em Direito Público pela PUC Minas e em Direito Eleitoral pela UniBH, além de estar em constante aprimoramento com uma especialização em Magistratura em andamento. Seu compromisso com a excelência acadêmica reflete sua paixão por contribuir para o fortalecimento da justiça no Brasil.

Renata Silva Alves
Author: Renata Silva Alves

Renata Silva Alves, formada em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia, possui vasta experiência e dedicação à área jurídica. É especialista em Direito Público pela PUC Minas e em Direito Eleitoral pela UniBH, além de estar em constante aprimoramento com uma especialização em Magistratura em andamento. Seu compromisso com a excelência acadêmica reflete sua paixão por contribuir para o fortalecimento da justiça no Brasil.

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